Cultura da caatiga

Cultura

 É natural que aspectos da zona seca do Nordeste, principalmente da Caatinga, tenham uma presença marcante na música regional. Dois fatos explicam isto: 1. O Nordeste era rural, situação que predominou até recentemente, a maioria dos compositores era de origem rural, e o próprio Gonzagão também o era; 2. O drama das secas periódicas que ocorrem na região, castigando a população, e cujo sofrimento sensibiliza por demais a sociedade. No Documento “O Bioma Caatinga representado na Cultura Popular Nordestina”, publicado pela Embrapa Semi-Árido, o autor garimpa em cerca de 34 clássicos do cancioneiro regional, versos, nos quais procura analisar a vinculação entre a sabedoria popular e o conhecimento cientifico sobre o Semi-Árido, especialmente a Caatinga. A sua origem rural e o fato de muito apreciar a música nordestina estimularam o autor a vasculhar em versos primorosos paralelismo com o trabalho de pesquisador que exerce há 26 anos.
Já na apresentação do referido documento chama-se a atenção para o fato de que se a tecnologia criada pela pesquisa não chegar ao produtor, numa seca prolongada, a vaquinha vai ficar realmente no couro e no osso, podendo até morrer, em alusão à música O último pau-de-arara (Venâncio/Corumba/J. Guimarães).
O primeiro aspecto abordado no documento é a caracterização da Caatinga, a pastagem nativa mais densa do mundo, ou seja, com maior quantidade de arbustos e árvores, e isto é enfatizado na frase “... pra ver um cabra entrar no mato encorado, derrubar touro amontado ...” da música Moxotó (Rosil Cavalcanti). Esta característica da vegetação obriga o vaqueiro a usar a roupa de couro, uma indumentária única no mundo, que foi alçada à condição de símbolo cultural da região, tendo sido adotada de modo artístico por cantores como Gonzagão. Outra característica da Caatinga é a queda das folhas. Como economia d’água, as plantas lenhosas perdem as folhas na época seca, e isto é retratado em várias músicas, como em Maria Fulô (H. Teixeira/Sivuca), no trecho “Adeus Maria fulô, marmeleiro amarelou, Adeus Maria Fulô, olho d’água esturricou”. O marmeleiro é citado porque as folhas desta planta, antes de caírem, se tornam amareladas, prenunciando a estação seca. No grande clássico Luar do Sertão (Catulo da P. Cearense), há o trecho “Ai que saudade do luar da minha terra, lá na serra branquejando folhas secas pelo chão.
Outro aspecto abordado é o efeito das secas na morte das plantas. Vejam estas duas músicas: “... Se não vier do céu, chuva que nos acuda, macambira morre, xique-xique seca, juriti se muda...” (Meu Cariri - Rosil Cavalcanti); “Quando a lama virou pedra e mandacaru secou; quando ribaçã de sede bateu asas e voou ... ” (Paraíba - H. Teixeira/L. Gonzaga). Se há algo comum no Semi-Árido é a morte de plantas numa seca prolongada. Nestas duas músicas, no entanto, a morte das espécies citadas são licenças poéticas dos compositores. Essas são plantas que não morrem. Seus mecanismos fisiológicos permitem que elas não percam água e, por isso, são plantas muito utilizadas pelos pecuaristas para alimentar os rebanhos nas secas prolongadas. Elas não morrem mas aparecem nas músicas porque têm aspectos fenotípicos diferentes, que atraem a atenção. As cactáceas e bromeliáceas são plantas bonitas e muito resistentes aos estresses hídricos da região. Ao cantá-las mortas, os compositores ressaltam até que ponto as secas se mostram severas. As secas causam realmente degradação da caatinga pelo perecimento de arbustos e árvores. Mas se não houver sobreuso por parte do homem, a vegetação volta ao normal por ela mesma.
O documento ainda aborda o aparecimento, com força total, das músicas ecológicas a partir dos anos 70. O romantismo do caboclo, tão bem caracterizado na música Juazeiro (L. Gonzaga/H. Teixeira) (“Juazeiro, não te alembra onde nosso amor nasceu, ...”) , passa a dividir espaço com a ecologia, representada em músicas como Umbuzeiro (Elomar) (“Mas cadê meus umbuzeiros, que floravam todo ano; ...”) e Matanças (Jatobá) (“... É caviúna, cerejeira, baraúna, imbuia, pau d´arco, cedro, juazeiro, jatobá; gonçalo alves, paraíba, itaúba, louro, ipê, paracaúba, peroba, massaranduba ...”). O que chama a atenção nestas duas músicas ecológicas é a preocupação com as árvores. Os compositores, ao invés de se “ligarem” mais no solo, se “ligam” mais na vegetação, e as árvores, por serem de maior porte, em menor número e de maior valor, são as primeiras a sentirem o peso da degradação. Aquele jargão dito durante as brigas de rua entre meninos, qual seja, “quanto maior o tamanho, maior a queda”, serve muito bem para a ecologia. O perigo de extinção está sempre nos maiores carnívoros, nos maiores herbívoros, nas maiores árvores, e assim por diante.
Finalmente, para concluir o documento, o autor coloca a música Estrada de Canindé (H. Teixeira) como questionamento. Nesta música há o trecho: “... Quem é rico anda em burrico, quem é pobre anda a pé. Mas o pobre vê na estrada, o orvalho beijando a flor, vê de perto o galo-de-campina, que quando canta muda de cor. Vai moiando os pés no riacho que água afresca Nosso Senhor. Vai oiando coisa a grané, coisa qui pra mode ver, um cristão tem que andar a pé.” Qual a mensagem a se tirar desta música? O pobre, ao ter que andar a pé, vê coisas bonitas, embora ninguém queira ser pobre. O autor quer ressaltar que os estudiosos da Caatinga, como ecólogos, botânicos, zoólogos, têm que andar a pé, ou seja, têm que entrar nela e estudá-la. Ele cita três casos: o primeiro diz respeito a certo evento ocorrido em 1996, no qual uma professora de botânica de Pernambuco relatava que os botânicos preferiam concentrar as coletas de plantas ao longo da Rodovia BR 232 (Recife - Araripina), por ser mais fácil, ao invés de se embrenharem em Caatingas mais distantes. Consultada por ocasião da redação do documento em análise, a mesma professora revelou que este comodismo tinha sido deixado de lado, e que as coletas estavam cobrindo todo o estado.
O segundo caso diz respeito ao centenário de Petrolina (21.09.1995). Escolheram como lema a frase “Petrolina: Entre o rio e a história”. Mais apropriado teria sido: “Petrolina: Entre o rio e a Caatinga, a história”. Rapidamente, esqueceram a nossa mata, tão bem representada na bandeira do município pelo mandacaru. Noutro caso, não constando no documento em análise, um mestrando recém-graduado em Biologia queria desenvolver a tese de M.Sc com cactáceas, procurou o autor para conseguir sementes, dizendo que já tinha tentado em outras instituições, até na França. Ora, tentar conseguir sementes de cactáceas na França é uma demonstração de que durante o curso houve pouco interesse pelas nossas matas e plantas. Isto não deixa de ser uma falta de auto-estima. Parece que os professores deste estudante nunca o levaram para entrar na Caatinga. Parece que eles não exercitaram a frase “coisa qui pra mode ver, um cristão tem que andar a pé”. O autor conclui o documento chamando a atenção para o fato de que se nós não nos embrearmos em nossas matas para estudá-las (ou “oiá-las”), os estrangeiros chegam, “oiam” e levam. E a sociedade, que espera isto de nós, ao ver que estamos sempre “botando desculpas na falta de recursos”, provavelmente cantará a seguinte música: “... Que mentira que lorota boa, que mentira que lorota boa” (Lorota boa - H. Teixeira/ L. Gonzaga).


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